Promotores Municipais têm artigo publicado na ConJur; Confira na íntegra

Já não há mais rubicão a ser transposto e cada vez mais decisões do Poder Judiciário brasileiro não cansam de surpreender. Especialmente quando são reveladoras de voluntarismo que resulta do sentimento de culpa de tradição judaico cristã ocidental. A 3° Turma Recursal do Estado do Ceará, analisando recurso inominado na fase de cumprimento de sentença, declarou, de forma incidental, a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 10.562/2017 que, regulamentando o disposto no artigo 100, §§3º e 4º, da CF/88, definiu, como obrigações de pequeno valor, os créditos oriundos de decisão judicial transitada em julgado, cujo montante total atualizado não exceda o valor do maior benefício do Regime Geral de Previdência Social — RGPS. Eis os argumentos da decisão: violação da proporcionalidade diante da posição do ente público no ranking de maiores Produto Interno Bruto (PIBs) das capitais brasileiras e o volume das receitas orçamentárias obtidas nos últimos anos.

Tais fundamentos afrontam a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), segundo o qual a aferição da capacidade econômica do ente federado, para fins de delimitação do teto para o pagamento de seus débitos por RPV, não se esgota na verificação do quantum da receita do Estado, pois esta quantia não reflete, por si só, os graus de endividamento e de litigiosidade do ente federado: STF — ADI 4332, ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 07/02/2018; STF – ADI 5100, ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 27/04/2020.

Os argumentos trazidos pelo ente municipal acerca do aumento de despesas e das limitações orçamentárias foram rechaçados e considerados irrelevantes, sob o (esdrúxulo!) fundamento de que deve ser garantido o “direito fundamental à RPV”. Há dezenas de acórdãos nesse sentido no Judiciário cearense, como este:

“(…) Sobre o fundamento de consequente aumento de despesas, também não merece prosperar tal argumentação, visto que o RPV é instrumento previsto para o uso das necessidades mais básicas de seu destinatário. Assim, configura-se como direito fundamental, visto que sua natureza jurídica é de verba alimentar, submetendo-se ao campo de abrangência do mínimo existencial, razão pela qual, diante de tamanha desproporcionalidade e gasto do Executivo com despesas não vinculadas ao mínimo existencial, deverá prevalecer a que efetiva o direito fundamental” (TJ-CE, 3° Turma Recursal, RI nº 0169881-37.2017.8.06.0001, relatora juíza  Daniela Lima da Rocha; Data do julgamento: 28/05/2021).

Tal entendimento viola as mais comezinhas lições de Direito Constitucional, além de atentar contra a boa hermenêutica constitucional. É elementar que a Constituição não prevê o direito fundamental à RPV. Também é errôneo definir que a natureza jurídica da obrigação de pequeno valor é de verba alimentar. Os débitos alimentares são aqueles definidos pela própria Constituição no §1º do artigo 100 (“decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em responsabilidade civil”) e não se relacionam com o conceito de RPV.

Nesse contexto, a 3° Turma Recursal do Estado do Ceará, ao invés de adotar o paradigma da autocontenção em matéria orçamentária, pelo contrário, avançou indevidamente no espaço decisório político-administrativo constitucionalmente assegurado à Administração Pública.

A sistemática da requisição de pequeno valor — RPV, prevista nos §§3º e 4º do artigo 100 da CF/88, possui natureza excepcional, visto ser a regra o pagamento dos débitos judiciais da Fazenda Pública na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos (artigo 100, caput, CF/88).

A Constituição autoriza os entes políticos a definir o montante das obrigações de pequeno valor, segundo as diferentes capacidades econômicas, com a condicionante de que o valor não seja inferior ao maior benefício do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), de acordo com a Emenda Constitucional nº 62/2009.

A utilização desse mecanismo simplificado, que permite a rápida satisfação dos créditos, no prazo de dois meses (artigo 535, §3º, II, CPC/2015, declarado constitucional pelo STF na ADI 5.534), deve atender às estritas previsões constitucional e legal.

A jurisprudência do STF consolidou-se no sentido de que a definição do valor referencial da RPV constitui juízo político, com amplo espectro de conformação dos entes federados. Assim, apenas a previsão de valor manifestamente desproporcional, considerada a respectiva capacidade econômica, poderia ser invalidada pelo Judiciário: STF — ADI 5534, ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 21/12/2020; STF – ADI 5100, relator(a): Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 27/04/2020.

Por quais razões então, o Poder Judiciário ainda recorre ao costume fácil de formulação de princípios? É sempre tentadora esta opção. Afinal, ao decidir com base num “princípio”, o julgador pretende conferir ares de superioridade ao que é exatamente o contrário: vazio de conteúdo, porque, em princípio, num “princípio” desses cabe qualquer coisa. Há anos que a crítica do professor Lênio Streck a tal “fenômeno” o qualificou de “pamprincipialismo”. Os “princípios” continuam sendo formulados… e aplicados! Eis quem tem mais autoridade sobre o assunto, uma vez que uma extensa lista desses “princípios” consta de seu “Verdade e Consenso”. Aqui na ConJur são também inúmeras suas colunas sobre esta tentação que parece não ter mais fim.

Por quais razões esta “saga principiológica” não para de proliferar? O que faz com que julgadores não se submetam à legalidade democrática, criada e aprovada pelo devido processo legislativo, e reivindiquem para si o dom de corrigir a mesma legalidade? Não há respostas para tais questionamentos na normatividade abandonada; o que não significa que não haja solução. A solução também advirá do exercício constante da crítica, bem como das luzes que se lançam na esfera do debate público sobre os riscos de quem extrapola sua competência. O desacerto de voluntarismos “pamprincipiológicos” liquida a racionalidade do Direito, além de, mais uma vez, privilegiar uns em prejuízos daqueles que resolveram aceitar a legalidade democrática. A perversão é mais profunda do que aparece ao primeiro olhar.

Autores: Martônio Mont’Alverne Barreto Lima e Marcela Vila Nova de Almeida Barbosa

Fonte: Revista eletrônica Consultor Jurídico